Desejo e insatisfação
23 de novembro de 2017
“[...] porque o ser humano, por um quase determinismo bárbaro de sua constituição, que é sempre contraditória, insatisfaz-se até quando alcança uma satisfação.” - Mário Ferreira dos Santos
Cabe recordar o óbvio: a busca por uma ‘satisfação absoluta’ é um desejo antigo — pode-se dizer grisalho, matusalém — no ser humano. Em nosso tempo, essa busca brota de forma ensandecida e voraz. Isto porque, na tentativa de estacionar no prazer, o homem moderno apenas cumpre se afundar na dor. E quanto maior for seu empenho dedicado a uma dita ‘felicidade plena’, maior será sua infelicidade e crise de sentido.
Diria algum autor moderno que a felicidade é tal qual como uma borboleta: quanto mais se corre atrás, mais ela lhe escapa das mãos. Exato. Pois, eis onde gostaria de chegar: não há, na dinâmica humana, um vivo ato intranscendente. Para todo drogado, há uma busca incessante pela permanência do êxtase. Para todo alcoólatra, há uma constante tentativa de persistir em um estado de fuga. A busca por qualquer satisfação e felicidade, nada mais é, senão, que um lúcido e sincero almejo do ser humano com o que lhe está ficando cada vez mais distante: a eternidade.
Antes de prosseguir, porém, devo explicar que, para mim, nada é intranscendente. Pode ser um fato de infinita, exemplar modéstia. Digamos que a nossa galinha pule a cerca do vizinho. pode haver uma peripécia de mais delicada humildade? Não. E, todavia, esse incidente, em que pese a sua aparente irrelevância, tem um toque de Graça e de Mistério. Se bem me lembro, é de Bernanos um romance que termina assim: “Tudo é Graça.”
Observemos nosso dia-a-dia para depararmos com esta espantosa obviedade: um simples ato como pensar (leia-se duvidar) numa conversação, faz com que levemos nossos olhos para o céu — a procura de quê? Perguntariam. Digo: a procura do inalcançável, do mistério; da saudade do que nunca foi e que ainda será. Em suma, do Logos.
Schopenhauer, este alemão esquizóide e sôfrego misantropo, desenhou a explicação e elucidou brilhantemente o que sua (e, ainda, nossa) geração, não compreende por estupidez ou desonestidade: — que uma vez desprovido de quaisquer sofrimentos, o homem insatisfaz-se por suas consecutivas satisfações.
“Mas se todos os desejos, apenas formados, fossem imediatamente realizados, com que se preencheria a vida humana, em que se empregaria o tempo? Coloque-se essa raça num país de fadas, onde tudo cresceria espontaneamente, onde as calhandras voariam já assadas ao alcance de todas as bocas, onde todos encontrariam sem dificuldade a sua amada e a obteriam o mais facilmente possível. Ver-se-ia então os homens morrerem de tédio ou enforcarem-se, outros disputarem, matarem-se e causarem-se mutuamente mais sofrimentos do que a natureza agora lhes impõe. Assim, para semelhante raça, nenhum outro teatro, nenhuma outra existência conviriam.”
Sentimos a dor, mas não a ausência absoluta da dor; sentimos a inquietação, mas não a ausência absoluta da inquietação; onde quer que haja um sentimento, um distúrbio ou anormalidade, é unicamente pela existência do seu antagônico. Pois não há viva alma que note dias de felicidade em sua vida antes mesmo de dar lugar aos dias de tristeza. Dirá Ortega y Gasset, em sua magnum opus: "A autêntica plenitude vital não consiste na satisfação, na conquista, na chegada. Já dizia Cervantes que 'o caminho é sempre melhor que a pousada'" Portanto, é por isso que nosso século acaba sendo composto por sujeitos cada vez mais infelizes e insatisfeitos: à medida que os nossos prazeres aumentam, tornamo-nos cada vez mais insensíveis. A constituição da livre escolha sem quaisquer consequências, do prazer para sempre fugir bovinamente da dor — tudo isso é sintomático e faz com que a imbecilidade seja obrigatória. E o efeito, é uma civilização inteira almejando a insensibilidade como um mérito sacrossanto. Numa espécie de admiração, diríamos uns para os outros: "O sujeito tem sangue frio", como se sua desumanidade fosse o auge do heroísmo, um novo Nirvana, a suprarracionalidade.
Assim como nosso corpo arrebentaria se estivesse sujeito à pressão da atmosfera, do mesmo modo, se o peso da miséria fosse banida da vida do homem, o excesso da sua arrogância conduziria à insânia mais desordenada e à loucura furiosa. Em todo tempo, cada um precisa ter dores ou miséria, do mesmo modo que o navio carece de lastro para manter-se em equilíbrio e andar direito.
Em tempo, convém dizer: a plenitude que tantos buscam em nosso tempo, reside na humilhação e arrependimento que não querem ter frente ao Cristo: teimando como uma criança mimada, optam por viver na degeneração com a firme esperança ocasional de que "dias mais felizes" virão. Alguns, já velhos e carrancudos, exasperam de si, assumindo a condição de escravos conscientes, firmes melancolia. Já outros, ainda caem no que chamo "espiral do cassino", onde o indivíduo voluntariamente leva-se a um estado de cegueira mental e apenas enxerga o auge da plenitude dentro do seu próprio ciclo vicioso.
Essa fome antinatural que compõem o estado de espírito do homem moderno, de ansiar por todas as possibilidades e não recusar nenhuma delas, é a chave para compreensão da maior maré de insatisfação que estará por vir nos próximos séculos. Nesse ritmo, desembocamos um novo estágio para feitio, o que hoje tem o lugar do prazer, mais tarde será entendido por ‘vontade’.
“Mesmo que um homem tivesse cem casas, ainda assim existiriam outras em um número muito superior ao dos dias que lhe restariam para sonhar com elas. E, mesmo que tivesse cem esposas, ainda restariam no mundo mais mulheres do que ele jamais seria capaz de conhecer. Um homem assim seria um sultão louco tomado de ciúmes da raça humana inteira, até mesmo dos mortos e dos que ainda não nasceram.”
Por isso mesmo a nossa faculdade de sofrer é mais lúcida. Mas esse sofrimento precisa estar longe de um sofrimento desprovido de significado. Muito pior seria da busca de um sofrimento pelo sofrimento, de forma sádica — como buscam os neoestóicos de nosso tempo — um sofrimento com finalidade e sentido, é um sofrimento Frankliano. E, portanto, é digno de um sofrer honrado, pode-se dizer até, simplesmente, humano.