Eis uma indubitável e eterna verdade: – para o brasileiro, tudo tem de haver equilíbrio. Digo, tudo, absolutamente tudo, precisa ser feito com uma apavorante moderação.
Não exagero. Se perguntarem para um mendigo ele consentirá, cristalino: “Pois é, pois é. Até Deus em excesso faz mal.” E ninguém percebe. Ninguém, incondicionalmente ninguém, vê que o demônio da radicalidade torna o pecador um mártir.
Eis, então, o que quero dizer: certa feita estava lá, eu, na parada esperando o ônibus. O calor presente era tão apolíneo, que ofendia alguns com cascudos no crânio, sovacos chorando etc., em suma, era um calor que fabricava estrábicos.
O ônibus chega. Entro. Bom dia, bom dia. O motorista emanava, de modo lascivo e como quem já cansou de ser molestado verbalmente, o seu enésimo bom dia maquinal.
Assim que todos passam da catraca, é unânime a consciência de que a promiscuidade está assegurada – pode até haver pudor antes da catraca, mas, após, é assentir-se num império abjeto bukowskiano.
Para minha sorte, não estava lotado. Então, sem muita depravação. Uma multidão de rostos te observam, você acaba de invadir um palco e, portanto, até caminhar para o assento, é batata todos te seguirem com o olhar, como num desfile.
Sento e me sinto tão órfão de mim mesmo. Notem: todo assento de ônibus é um quarto particular. Quando não há um vizinho na cadeira ao lado, todas suas atitudes são inexistentes – enquanto o ônibus toma seu percurso, todos a minha volta cavalgavam em seus assentos. É obrigatório tudo, unanimemente tudo, ferozmente pulular.
De repente, entra um descalço e urra para todos nós, com terna compaixão: – “alguém pode pagar minha passagem?” Todos lambem com o olhar o pobre. Longos trinta segundos passaram, e alguém passou o cartão na catraca. “Obrigado, obrigado.” Foi-se sentar.
Outra parada, outro descalço: – “alguém para comprar essa paçoca e me ajudar a sustentar minha família?” Longos quarenta segundos passaram. Um fulminante silêncio de quem decide. Dois ou três resolvem comprar.
O motorista passava, religiosamente, em todas as paradas. Pasmem: até nas paradas extintas de pessoas. “Estou vendendo pomadas, quem?” Pois não, pois não. E, eis que, de súbito, todos entram em profundo transe e fazem as contas: três. Número três.
Próxima parada, um descalço requisita, com amorosa piedade: – “Alguém para passar para mim?” Dessa vez, longos e extraordinários dois minutos passaram. Insiste: “Por favor, alguém?” Um silêncio fúnebre. Coço o bolso e me deparo com uma teia de aranha. Suplica, com um exílio de Robison Crusoé: “Preciso chegar até a rua tal, por favor.” Olho ao meu redor. Fiquei besta: todos olhando para a janela, roboticamente.
Penso que todos deviam estar, em orfeônicos pensamentos: – “número três. Preciso ter equilíbrio, tudo tem limite.” Em hipnose coletiva, era eu o primeiro assaltado por chavões mentais do tipo: “Até água em excesso faz mal, até Deus em excesso faz mal.”
Ao todo, sete eternos minutos se passaram e, o pobre, já numa pusilanimidade medonha, recua cabisbaixo – saindo do ônibus sem murmurar, sem um pio. Apenas humilhado de si mesmo. E de súbito eu percebi o que estava acontecendo. Houve ali, mais uma vez: – uma vítima do equilíbrio brasileiro.
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